Ao futuro médico

Escrito por: Júlio Sousa

Publicado em: 13/10/2019

Crônica escrita pelo Médico Infectologista Gerson Salvador especialmente pra você, futuro médico.

Futuro médico, evoé. Hoje soube notícias de você, estou realmente feliz porque acompanhei de longe sua trajetória e torci por você. Desejo um lindo encontro com a Medicina, essa vida de tanta dor e paixão, que ela lhe mereça. Haja sangue e sonhos!

Você me permitiu um encontro comigo. Talvez uma projeção, por rever em sua estrada um tanto da minha, hoje voltei ao meu encontro com Ela, explico:

Quando eu era criança morava no sertão da Bahia, era quente minha Cansanção, nas caatingas bravas. Quem cuidava de nossas enfermidades eram as benzedeiras e os curadores, os práticos de farmácia também quando era caso de remédio, não tinha médico em minha cidade, só de vez em quando – um ou outro.

Aos oito anos minha família migrou, pegamos o rumo de São Paulo, era pra construir futuro. Meu avó Borges disse que faria muito gosto se eu voltasse formado doutor, ele achava bonito esse nome! Era um homem da roça, operário a vida toda, pedreiro, carpinteiro, agricultor. Tinha muito respeito e admiração pelos médicos porque tinha a doença do barbeiro e andou morrendo, Doutor Barreto lhe colocou um marca-passo, e ele achava que essas coisas de Medicina eram como mágica. E eram?! Eu faço muito gosto que você volte formado doutor! Você é sabido, é estudioso, puxou as inteligências de sua mãe, aprovo.

Na Lagoa do Meio morava a Vó Babu, ela se queixava de dor nas pernas desde quando era mocinha de quinze anos e uma vaca lhe feriu as pernas. Eu menino, ela me pedia para apanhar folhas no mato para ela botar nas pernas. No nosso último encontro antes de eu pegar a estrada comprida, ela me abençoou com a mão na cabeça: meu filho vai ser médico, eu tenho certeza! Um dia você vai cuidar das dores de minhas pernas, seu eu viver, Deus permita!

Ônibus verde-amarelo, Gontijo, Monte Santo – São Paulo, duas noites e três dias, estrada comprida, chegamos ao Tietê. Agora a vida era em São Paulo.

Para não esticar a conversa, eu trouxe como um compromisso as recomendações dos meus avós. Trouxe no peito, cravado, uma sentença. Era pra eu ser médico. Isso me agradava.

Na cidade de pedra, houve percalços, trabalhar desde menino, entregar panfleto de dentista na Rua Silva Bueno, ser promovido a entregador do Jornal O Patriota, engajar-me com música e poesia, apaixonar-me pela literatura. Assim adolesci.

Quando eu estava no primeiro colegial minha professora de História, Regina Cairo (querida!) me perguntou o que eu ia fazer de faculdade: Medicina! Mas seus pais tem dinheiro para pagar uma faculdade particular? Não, mas tem faculdade pública em São Paulo! Tem mesmo, e você tem tudo pra passar, mas tem que estudar… não adianta ficar no pátio tocando com sua banda, nem jogando bola na hora da aula… tem que estudar e fazer cursinho. Você conhece algum curso pré-vestibular? Essa escola estadual está defasada, infelizmente, não tem condição de te dar a formação necessária para esse vestibular concorrido.

Eu não tinha ideia que existia curso pré-vestibular, eu não tinha noção de quem eram mais de treze mil pessoas todos os anos disputando poucas vagas.

A professora Regina Cairo, coordenadora pedagógica do 1BH, me disse que havia um caminho e pedras. Eu segui.

Foram três anos de trabalho e cursinho, foram duas tentativas em que eu não passei em nada. No meu primeiro vestibular eu quase zerei a prova de Física. Não ser aprovado acaba com a auto-estima, isso é perverso demais.

Quantas vezes eu ouvi que isso não era curso pra gente de minha “classe”, que era melhor eu fazer outra coisa, que eu ia me graduar no pré-vestibular… quantas vezes?

Eu tinha uma confiança muito grande – e proporcionalmente estúpida, nas minhas redações, isso me fazia acreditar que seria aprovado na Unicamp – cuja redação valia metade da nota. No meu segundo vestibular não passei para segunda fase da Fuvest por dois pontos, passei para a segunda fase da Unicamp e fiz uma prova bonita para a Unesp (e fui reprovado por uma nota baixa na redação!)… não passei em nada.

Comecei o ano muito triste, sem gosto, sem sal. Um dia falei pra meu pai que eu ia desistir, mudar de curso, engasguei… ele me perguntou porque eu estava mudando de ideia… eu fui sincero: tinha nota para ser aprovado em qualquer curso, menos Medicina. Menos Medicina. Menos Medicina. Ele me disse sabe o que?

Meu filho, eu vim pra São Paulo sozinho com dezessete anos, morei em pensão, passei necessidade, nunce pude escolher trabalho. Se eu pudesse ter estudado eu queria ser um Delegado de Polícia, meu sonho era ser Delegado. Eu nunca pude sonhar. Você vai realizar os seus sonhos. Eu faço qualquer coisa pra você realizar os seus sonhos. Enquanto eu tiver forças pra trabalhar, você vai ter casa e comida. Se você demorar dez anos pra passar, tudo bem. A gente consegue!

A minha mãe percebeu que eu não estava muito bem, me chamou pra conversar e eu não olhava pra cara dela, não me sentia bem porque eu não tinha sido aprovado em nada. Quando ela me abraçou daquele jeito dela eu chorei que nem criança, alto, por uns trinta minutos.

Quando virou o semestre eu estava mais tranquilo, indo bem nos simulados. Só trabalhava aos sábados. Tinha tempo para estudar. Fiz as provas de primeira fase. Feliz Ano Novo! Era o novo milênio, que chegou sem que eu percebesse, com tantas promessas. Entrei no milênio novo numa guarita de segurança de uma empresa em que eu trabalhava aos finais de semana. Eu e Descartes, eu e Kepler, eu e Boyle, eu e Rousseau… quando deu meia-noite eu subi na caixa d´água e vi os fogos. Novo milênio.

Segunda fase, fiz provas bonitas, meus gabaritos batiam com as correções na televisão, estava certo.

Saíram as listas, assim foi… o meu nome estava na lista da Unicamp. Eu fiquei muito realizado, muito feliz. Era meu projeto de menino.

No dia seguinte o telefone tocou, à tarde, era a Jane, colega do cursinho. Alô, e aí, Gerson? Está muito Feliz? Feliz! Estou muito feliz, também por você! Eu passei na Unesp, mas na USP eu não passei não. Na USP? O resultado da Fuvest só sai amanhã?! Eu vi no uol, saiu a lista. E você viu em que faculdade eu passei? Acho que foi na USP mesmo. Não é possível! Eu vou checar.

Internet discada. Eu não tinha modem.

Silêncio.

Eu tremia ao lado do telefone.

Nesses poucos minutos passou um universo na minha cabeça.

Alô?

Oi Jane!

Trinta-e-três, Pinheiros, primeira opção.

Obrigado! Mordendo o lábio. Chorando muito, menino.

Filho, o que aconteceu?

Eu passei na USP, mãe. Trinta-e-três, Pinheiros, primeira opção.

Bença vô Borges, Bença vó Babu.

Trinta-e-três, Pinheiros, primeira opção.

Casa dos Bisavós Borges e Emídia.
Cansanção-BA, 1987.  (Foto de Martinha Salvador)

Autor: Gerson Salvador
Graduado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP. Especialista em infectologia pela USP. Médico assistente da Divisão de Clínica Médica do Hospital Universitário da USP. Infectologista do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da FMUSP. Atua em doenças infecciosas, clínica médica, emergências clínicas e saúde pública.

Empreendedor em educação há mais de 15 anos. Fundador dos sites Rumo ao ITA, Projeto Medicina e Projeto Redação. Já ajudou milhares de estudantes ingressarem no curso de Medicina em universidades públicas e privadas no Brasil.


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