Escrito por: Júlio Sousa
Publicado em: 13/02/2017
“Menina de 16 anos, grávida pela primeira vez, chega à maternidade, com contrações ritmadas e sete centímetros de dilatação. Não se queixava de dores fortes, apenas desconforto e certo cansaço. Andamos pelos corredores, do lado de fora da sala do pré-parto, das 23h até meia-noite.” “A obstetra aqui sou eu!” Tudo corria bem, eu fazia massagens […]
“Menina de 16 anos, grávida pela primeira vez, chega à maternidade, com contrações ritmadas e sete centímetros de dilatação.
Não se queixava de dores fortes, apenas desconforto e certo cansaço. Andamos pelos corredores, do lado de fora da sala do pré-parto, das 23h até meia-noite.”
“A obstetra aqui sou eu!”
Tudo corria bem, eu fazia massagens na sua região lombar quando, de repente, a médica plantonista apareceu no local para atender outra paciente que estava na mesma sala, já que não há pré-parto individual.
Ignorando o meu relato de que a paciente estava evoluindo super bem prescreveu ocitocina* (hormônio usado para estimular as contrações) diretamente no soro.
Sem uso de bomba de infusão, a correr, sem um controle preciso do número de gotas, apesar de a paciente e a mãe dela terem dito que não queriam.
“A obstetra aqui sou eu!”, disse.
A paciente começou a sentir contrações dolorosas, ficando impossibilitada de caminhar.
“Quem é a obstetra aqui? É tu?”
A obstetra mandou ela se deitar na cama, para novo exame de toque, dizendo “Ah, você está fazendo é fiasco!” e rompeu a bolsa da parturiente. Líquido claro.
Os batimentos cardíacos do bebê estavam ótimos, eu captava com o sonar a cada dez minutos, preocupada com tanta ocitocina.
Eu tentava argumentar com a obstetra: “Dra, ela estava com contrações efetivas, ritmadas.” Mas ouvi: “Agora são meia-noite e meia. Vamos acabar com isso já!” E repetiu a pérola: “Quem é a obstetra aqui? É tu?”
Bom, lá pelas duas da manhã, a paciente já estava com dilatação total, mas o bebê ainda estava alto. E a “Dra” tascou outro soro com ocitocina na moça, sob protestos da paciente, da mãe, que era sua acompanhante, e meus.
Na sequência levei uma super bronca porque deixei a paciente beber água.
A manobra de Kristeller
Bom, quando o bebê desceu e estava quase nascendo, a doutora, com gestos rudes, fez a paciente levantar-se do leito e me pediu para levá-la para a sala de parto, a cerca de dez metros dali.
Disse para eu me paramentar, porque seria eu que daria assistência àquele parto.
Minha colega estagiária, também interna, fazia o acompanhamento dos batimentos cardíacos do bebê que estavam ótimos, em 140 por minuto, e posicionamos a paciente deitada, em litotomia.
A cabeça do bebê vinha descendo lentamente, mas descia. Os batimentos do bebê continuavam excelentes. Mas a obstetra, impaciente, gritou para minha colega realizar manobra de Kristeller* (manobra proibida, por ser perigosa para mãe e bebê, que consiste na aplicação de pressão na parte superior do útero com o objetivo de facilitar a saída do bebê).
Ela se negou e eu disse para ela que nós não realizávamos aquilo. A médica brigou conosco, xingou todo mundo e mandou a enfermeira subir na escadinha e fazer.
A enfermeira quase montou na paciente, que berrava para que parassem. A menina dizia que doía muito e que não conseguia respirar.
“Cala a boca!”, gritou a obstetra. E subiu na paciente também.
A episiotomia
Eu dizia que não tinha necessidade daquilo, que o bebê estava descendo. Foi um pandemônio. A obstetra se enfureceu, tirou-me de campo e fez episiotomia* (corte entre a vagina e o períneo da mulher, também abolido por muitos médicos humanizados, para “facilitar” a saída do bebê).
Minha colega auscultou novamente o bebê: os batimentos cardíacos estavam ótimos, 136 por minuto.
Não contente, a médica pediu para a enfermeira trazer o fórceps. Quando ela colocou, a paciente berrou de dor. E o corte, já enorme e feito contra a vontade de paciente, aumentou ainda mais, como um rasgo.
A médica puxou o bebê com o fórceps, desnecessariamente ao meu ver, porque o bebê descia, ainda que lentamente, era só ter paciência já que os batimentos cardíacos mostravam que tudo evoluía bem, não havia sofrimento fetal. Até o dorso do bebê estava à esquerda, como manda o figurino.
A médica olhou para mim, ao final e disse: “Você que ficou aí parada, sutura aqui a episiotomia!”. Levei mais de uma hora para suturar aquele corte.
“Passou a limpo o prontuário”
Eu e minha colega anotamos tudo no prontuário. A “doutora” não gostou do nosso registro e “passou a limpo o prontuário”, fazendo nova folha de registro! E foi dormir.
Para completar ainda recebi bronca por “ter deixado a familiar entrar”. Quando retruquei dizendo que é lei federal, ouvi: “Mas eles não sabem!”
A minha paciente chorou e a mãe dela disse: “É assim mesmo, filha”. Eu disse que não, não era, que não precisava ser assim, horrível, enquanto suturava aquele corte profundo, enorme, que ia até quase a nádega da moça.
Quando solicitei à enfermagem gelo perineal, para reduzir o edema, elas disseram: “Só se a Dra. prescrever!” Daí me humilhei na frente da obstetra para conseguir que fosse colocada a compressa de gelo. Consegui, mas ouvi que tinha sido bom “para ela ver que pôr filho no mundo não é brincadeira!”
A Violência por conta da idade
Daí eu entendi que ela fez tudo isso porque a moça tinha apenas 16 anos.
Também doeu ver que as pessoas não têm consciência de que isso é violência, mesmo depois de alertamos, eu e minha colega.
A mãe dela disse, no fim: “Olha, doutoras, eu não vou denunciar a médica porque a gente precisa dos médicos! A gente nunca deve fazer uma coisa dessas com quem cuida da gente!”
Foi de partir coração ouvir isso. A minha colega e eu choramos de raiva, de frustração, de tudo, no quarto dos internos. Esse foi o caso mais criminoso e horrível que eu assisti, o parto mais violento.”
*Explicações sobre os termos foram feitas pelo blog, sob supervisão da médica.
Raquel*(nome trocado), 30 anos, é estudante de medicina e só permitiu que esse relato fosse publicado no blog se a identidade dela, do hospital e da obstetra fossem mantidas em sigilo. A profissional em questão é professora no curso de medicina e ela, claro, teme represálias.
Violência Obstétrica é CRIME e deve ser denuciando! As mulheres já passam por muitas coisas para na hora mais feliz (de algumas delas) serem tratadas dessa maneira.
A medicina deve receber seus pacientes de braços abertos e tratá-los com o mais puro carinho e compreensão. Pois as pessoas entregam suas vidas e de seus familiares nas mãos desses mesmos médicos com plena confiança!
“Quando os médicos diferem, o paciente morre.” (Confúcio)
Link: http://emais.estadao.com.br/blogs/ser-mae/estudante-de-medicina-escreve-desabafo-depois-de-assistir-a-parto-violento-feito-por-professora-chorei-de-raiva-e-frustracao-no-quarto-dos-internos/